AS HIPÓTESES LEGAIS DE PERDA DO PÁTRIO PODER
A destituição (perda) do pátrio poder rege-se pelo disposto no Código Civil e na Lei nº 8.069/90 (ECA). Não há exclusão de um pelo outro diploma legal, antes, interpenetram-se.
Com efeito, dispõe o art. 24 da Lei nº 8.069/90 (ECA) que a perda do pátrio poder será decretada judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na lei civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
O art. 22 do ECA, por seu turno, refere que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
A lei civil a que se refere o art. 24 é o Código Civil, que no art. 395 e incisos estabelece:
"Perderá por ato judicial o pátrio poder o pai, ou mãe: I - que castigar imoderadamente o filho; II - que o deixar em abandono; III - que praticar atos contrários à moral e aos bons costumes".
Os direitos, deveres e obrigações dos pais, previstos no art. 22 do ECA, por seu turno, são, basicamente, aqueles do art. 384 e incisos do Código Civil. Temos que à motivação de perda do pátrio poder, do art. 395 do CC, a lei estatutária ainda acresceu aos pais o dever de obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.Isso significa que, se o juiz determinar certa medida em prol da formação da criança ou de determinado adolescente e os pais deixarem de cumpri-la, estarão sujeitos à sanção de perda do pátrio poder. Tal interpretação funda-se no próprio art. 22 do ECA, porque, ao lado dos deveres de sustento, guarda e educação, o dispositivo ainda acresceu essa outra obrigação, colocando-a no mesmo patamar das demais.
O art. 395 do CC, por seu turno, a rigor, prevê que apenas a exacerbação maldosa do exercício de alguns direitos inerentes ao pátrio poder, estes previstos no art. 384 do CC, é causa da perda do pátrio poder.
Assim, se compete aos pais dirigir a criação e a educação dos filhos menores (inc. I, art. 384), exigindo-lhes obediência (inc. VII), tendo-os em sua companhia e guarda (inc. II), reclamando-os de quem ilegalmente os detenha (inc. VI), o desvirtuamento gravoso de tais direitos implica sanção de perda do pátrio poder. Note-se, porém, que não basta o mero descumprimento de uma ou de todas as obrigações elencadas no art. 22, ou no art. 384 do CC, para a perda do pátrio poder, mas, sim, como dizem CURY, GARRIDO e MARÇURA, devendo ficar caracterizada a inescusabilidade da ação ou omissão (* In: Estatuto da Criança e do Adolescente, São Paulo, 2. ed., Revista dos Tribunais, 2000, p. 36.29.
Essa inescusabilidade é determinante, a nosso sentir, para a imposição da sanção da perda do pátrio poder, porque o juiz deve sempre e sempre averiguar a possibilidade de "acertar" a criança em sua família natural.
Consoante dispõe o inc. I, art. 395, CC, os pais perderão o pátrio poder se castigarem imoderadamente o filho. O castigo exagerado, vedado em lei não se resume ao físico, mas também ao psicológico, porque ambos podem chegar à tortura.
Embora alguns entendam que não há qualquer direito de os pais castigarem fisicamente os filhos, ao que vemos uma menção meramente filosófica, a leitura do inc. I - art. 395,CC, dá a entender pela existência da possibilidade de se impor aos filhos um castigo moderado, físico ou psicológico. Na verdade, a vida e a lei o demonstram, para toda ilicitude existe um castigo.
Obviamente, identifica-se um jus corrigendi a cargo dos pais relativamente aos seus filhos. Na vida funcional temos visto que, via de regra, quando o pai não exercita ojus corrigendi aos filhos, a vida o faz pelas vias mais dolorosas e implacáveis. Já vi alguns reclamando: "Eu nunca fui agredido pelo meu pai e agora venho apanhar da Polícia...".
Ora, é aos pais que compete a criação e a educação dos filhos, bem como exigir-lhes a prestação de obediência e respeito (incs. I e VII, art. 384, CC). Não se trata de mera faculdade outorgada aos pais, mas um verdadeiro poder-dever, porque na vida a criança encontrará limites, no dever de obediência, no dever de hierarquia funcional, enfim. É a previsão legal. Muitas vezes, a supressão de benefícios, ou vantagens usufruídas pelos filhos, são meras supressões de regalias, castigos psicológicos que se revelam inúteis, que nem de longe tocam a sensibilidade de alguns filhos. Ficam, portanto, "sanções" vazias de significado. Assim, só resta ao pai exercer devidamente o jus corrigendi.
O que a lei visa coibir não é a palmada, o castigo físico, em si, mas veda-se a agressão pura e simples, a agressão gratuita, exagerada, a brutalidade, a estupidez. O castigo é lícito (* PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições, p. 248.30, pelo que pode o pai aplicá-lo ao filho, com o propósito de emendá-lo, como ensina SILVIO RODRIGUES, a infração ao dever só se caracteriza quando for excessivo o castigo (* RODRIGUES, Silvio. Direito de Família, op. cit., p. 353.31.
Mas, como o magistrado poderá aquilatar se houve ou não um rigor excessivo no exercício do jus corrigendi? Muitas vezes, qualquer comum sabe quando presente uma agressão desmedida, seja porque imotivada, seja porque estúpida, contra uma criança ou adolescente, mas outras vezes, não. JOSÉ ANTONIO DE PAULA SANTOS NETO propõe que, para aquilatar o excesso, sopesará o juiz a faixa etária em que se encontra o menor, bem como suas condições de desenvolvimento físico e psicológico (* In: Do Pátrio Poder. São Paulo, Revista dos Tribunais, op. cit.p. 189.32. Com efeito, há certa diferença entre o pai agredir a socos e a pontapés uma criança (até doze anos, como dispõe o ECA) e assim fazê-lo quanto a um adolescente de dezessete anos. Já vimos casos de o filho adolescente agredir imoderadamente o pai e a mãe. Isso deve ser bem pensado, portanto.
A agressão desmedida do pai ao filho obviamente abusiva, pode redundar em violação da lei penal, porque pode configurar o crime de maus tratos (art. 136, CP), em face do abuso dos meios de correção ou disciplina. Em o agente ministerial, que oficia na ação de perda do pátrio poder, tendo ciência de tal agressão, deve providenciar no envio da prova de materialidade ao seu colega de Ministério Público para a competente ação penal, se for o caso. Tratamos de ação penal pública incondicionada.
Na verdade, muitas vezes a agressão abusiva não passa de um furor colérico, passageiro, do pai ou da mãe. Pode nunca ter-se agredido o filho, mas, em razão de momentâneo desvio psicológico do pai ou da mãe, pode vislumbrar-se, aparentemente, a hipótese legal. Isso deve ser investigado, sob pena de sérias injustiças. Tivemos um caso, v.g., em que a mãe, desesperada porque desempregada, perdeu a paciência pela teimosia da criança. Alguns passantes viram apenas a agressão e denunciaram-na ao agente ministerial. Este, imediatamente, ajuizou uma ação de destituição e obteve liminarmente, sem ouvir a parte adversa, o afastamento da criança de sua mãe. Obviamente, um exagero corrigido pela Corte.
A segunda hipótese legal dá-se quando os detentores do pátrio poder deixam a criança ou o adolescente em abandono (art. 395, inc. II, CC).
Os pais (ou detentor do pátrio poder) têm o direito de ter seus filhos em sua companhia e guarda (art. 384, inc. II, CC), reclamando-os de quem injustamente os detenha (inc. VI). Em contrapartida, os filhos também têm o direito a serem criados e educados no seio da sua família (art. 19, ECA). A criança e o adolescente devem ser educados e criados no seio de sua família natural, entendendo-se esta como a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes (arts. 19 e 25, ECA). Destarte, os direitos dos filhos são os deveres dos pais.
Na situação de abandono, os pais violam os seus deveres, relativamente à guarda, à criação e à educação. Priva-se o filho da necessária subsistência, negando-se-lhe alimentos, saúde, moradia, instrução, enfim, deixando-o na rua à própria sorte. O abandono não precisa ser total, mas a causa deve ser devidamente perquirida, porque, muitas vezes, a causa de abandono é a própria pobreza, ou seja, não é porque os pais deixem os filhos na rua, sem alimentos, que necessariamente há o abandono. É preciso, portanto, perquirir as causas do abandono, sabido que a pobreza não é motivo de perda do pátrio poder (art. 23, ECA), assim como não o motiva o baixo nível cultural ou a falta de outros recursos materiais. Como se sabe, existem outras soluções para resolver o problema da criança (art. 23, parágrafo único, ECA, v.g.), sem atingir os pais com a sanção de perda do pátrio poder. Daí por que se diz que o abandono deve ser intencional (RT-761/371).
O abandono também implica a violação do dever de guarda dos filhos.
A guarda, ensina CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (* Op. cit. p. 249-50.33, tem caráter dúplice, porque é um dever atribuído aos pais, e ao mesmo tempo um direito. É um dos liames do feixe de direitos componente do pátrio poder. Está ligada a uma situação jurídica, ou a uma situação de fato juridicamente protegida. Na situação jurídica, pode também ser um instituto (art. 33 § 1º, e art. 34, ECA); na situação fática, é a criticada expressão posse dos filhos.
Difere a companhia da guarda e não tratamos de mero jogo de palavras, porque há sentido prático nisso. Muitas vezes discute-se a mera companhia sob a alegação de estar em discussão a guarda. Via de regra, como ensinava EDGARD DE MOURA BITTENCOURT (* In: Guarda de filhos, São Paulo, LEUD, 1981, p. 434, a companhia, que é um direito, está contida na guarda. Mas esta é mais do que um direito, "é sobretudo um dever, que se impõe mediante sanções civis e até criminais". As visitas à criança, por exemplo, daqueles que estão privados da guarda ou do exercício do pátrio poder, configuram casos de companhia.
A mãe, mesmo casando-se novamente, não perde qualquer direito à guarda de seus filhos. Nem mesmo o adultério da mãe, se não prejudicial aos interesses da criança, justifica a perda de guarda ou companhia de seus filhos.
A perda do pátrio poder por abandono não significa isenção da obrigação alimentar a cargo dos pais.
A terceira hipótese de destituição dá-se pela prática de atos contrários à moral e aos bons costumes (inc. III, art. 395, CC). Note-se mesmo a tentativa de atos contrários à moral já configura o atentado aos bons costumes, ou seja, não é porque não tenha sido consumado o crime de atentado violento ao pudor ou o crime de estupro que o pai (ou a mãe) não possa perder a guarda do filho (a).
Atos contrários à moral e aos bons costumes são aqueles atos que ferem a integridade moral, o comportamento decente e digno das crianças e adolescentes.
Como sujeitos de direitos, as crianças e adolescentes têm todos os direitos da pessoa humana, relativos à dignidade, à moral, ao ensino, enfim, gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, como dispõe o art. 3º do ECA.
Os atos atentatórios à moral e aos bons costumes podem estar sendo praticados junto ao menor, isto é, não é preciso que as crianças sejam diretamente atingidas com o proceder dos pais para a decretação de perda do pátrio poder. Basta a potencialidade do perigo, para que uma medida seja tomada.
No mínimo, há abuso, o que é causa de suspensão do pátrio poder.
Inúmeras hipóteses podem configurar violação do dispositivo. Se os pais convivem com viciados em substâncias entorpecentes, utilizando-se de drogas na presença dos filhos, se praticam atos imorais; se praticam ou tentam praticar, atos de abuso sexual contra os filhos; se convivem com pessoas nas mesmas condições, na prática de atos depravados, em presença dos filhos; pais que incentivam o filho ao ilícito, civil ou penal. Enfim, são todos os atos que contaminam a formação moral dos filhos, como diz SÍLVIO RODRIGUES (* Op. loc.cit, p. 354.35.
A legislação trabalhista, igualmente, prevê caso de perda do pátrio poder quando o pai ou a mãe não concorrem para que o menor complete sua alfabetização, ou trabalhe em lugares perigosos ou insalubres ou em serviços prejudiciais à sua moralidade (CLT, art. 437, parágrafo único, e 405).
Na verdade, a previsão da lei trabalhista padece do mesmo equívoco da decretação de perda pela motivação penal, ou seja, o juízo trabalhista não deve decretar a perda de pátrio poder, porque é matéria que não lhe diz respeito por regra de competência. Aliás, pode até cometer-se flagrante injustiça, porque, no Brasil, a maior parte do trabalho indevido de crianças e adolescentes decorre da pobreza, situação social que, na maioria das vezes, não pode ser debitada aos pais, mas aos nossos dirigentes e à nossa precária política de proteção à criança e ao adolescente. Em Porto Alegre, por exemplo, um programa de apoio financeiro alimentar aos pais das crianças tem retirado inúmeros menores do trabalho de rua. A pobreza, diz a lei não é (e nem pode ser) causa de destituição do pátrio poder.
A solução que indicamos é o envio da sentença trabalhista, comprovadora da situação ilegal, ao órgão do Ministério Público Estadual, para as providências do due process of law, que podem consistir até na inclusão da família em programas de apoio.
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